quarta-feira, 28 de setembro de 2011

BATATA, TOMATE, CEBOLA

O trecho abaixo é dedicado especialmente à minha irmã Elizane Santos de Andrade Bichara. Tenho certeza que esse episódio que passamos juntas jamais será esquecido por ela.


Se vocês que acompanharam os últimos posts pensaram que o dia 17 de Dezembro foi longo (não me lembro em quantas partes o escrevi), garanto que vão achar o dia 23 de Dezembro tão longo quanto. Acreditem (se quiser) que as descrições narradas não foram propositais; os dias específicos foram longos em demasia para mim, como se tivessem 72 horas.

Dezembro. Verão intenso. No ano de 2009 a temperatura chegava a 35, 37 graus. No final da tarde, a costumeira tempestade de verão.
O portão se fechou atrás de mim. Estávamos os 4 na rua. Nuvens negras se formavam e cada trovoada trazia a sensação de insegurança.
Lembro-me da minha irmã, segurando o W no colo e preparando-se para correr até o ponto de ônibus porque alguns pingos de chuva começavam a cair... um aqui... outro acolá.
Eu estava com a Y. Mal dei o primeiro passo e os berros começaram. Também tentei correr, mas não tinha hábito de correr com peso nos braços, muito menos com uma criança, que se mexe, é flexível... e chora! Minha irmã me impressionou. Como conseguia correr daquele jeito com uma criança? Que inveja! Com a diferença de muitos minutos cheguei ao ponto de ônibus, já molhada pela chuva que aumentara.

Tempestade. Ponto de ônibus. Duas crianças. Uma sacola de plástico com documentos e algumas peças de roupa infantil. Uma irmã que se mostrava forte, decidida e desafiadora. Um eu ainda anestesiada e em choque. Meu cérebro trabalhando tanto que chegava a latejar e eu sentia como se levasse várias marteladas. Uma das crianças chorando no meu colo. Não, não havia um guarda chuva se quer.
E nesta agonia já haviam se passado mais de 15 minutos. As pessoas que estavam no ponto demonstravam impaciência como o choro da Y. A cada minuto que passava me sentia mais e mais angustiada. Quanta pressão! Quanta novidade! Quanto tudo!!! Eu sentia desespero e uma vontade enorme de chorar, até mais alto que a Y.

Finalmente avisto o ônibus com o letreiro 948A V. Zatt. Ufa! Levantar a mão dando sinal para que ele parasse. Eu vivia assim: um passo de cada vez porque era tenebroso pensar no depois.
Entramos no ônibus e o W também começa a chorar. Meu Deus! Que vontade de virar fumaça, voltar às cinzas, sei lá. Minha irmã, sempre mais esperta e pulso firme, controlou a situação com o W em poucos minutos. A Y e eu? A coisa estava feia, horrorosa e só piorou. Tentei sentar-me com ela; foi a pior coisa que fiz. Levantei e tive a certeza que ficar sentada não havia sido a pior coisa, não. Coloquei-a sentada sozinha no assento e a segurava. O escândalo só aumentou. Deixei-a de pé no banco para que a paisagem a acalmasse. Nada! Preciso comentar que os passageiros me batiam com os olhos e me encaravam como se fossem me linchar? E eu com a sensação que a qualquer momento o motorista pararia o ônibus e me expulsaria dali, aos pontapés, como um cão sarnento. Oh, Cristo Senhor, Maria Mãe de Jesus e José pai do mesmo... o ponto para descida não chegava! Tive a impressão que o ônibus nem saíra do lugar. Cheguei a um momento em que nada enxergava. Só tinha o sentido da audição para perceber os berros da Y. Padim Ciço, Ave Maria, Nossa Senhora de Fátima, São Judas Tadeu e todos os santos da igreja católica que eu nem conhecia, me ajudem por tudo que há de mais sagrado na Terra !!!

Então descemos. Ainda chovia muito. Ponto sem cobertura, lá vamos nós entrar no açougue para nos protegermos da chuva. Açougue? Sim, você leu a-ç-o-u-g-u-e. Açougue que tem carne moída, costela, miolo de acém, linguiça fresca e seca, coxão mole e duro, alcatra, músculo, patinho, cupim, toucinho, ovos, salsicha, bisteca, bife, coxa, asa, frango resfriado (ainda bem que não era gripado), joelho de porco, pescoço de frango, fígado, moela... aaaaaaaaaah! Só tinha aquela bendita placa para ler e distrair minha cabeça que doía. E o açougue só ia ficando lotado; parece que todo o bairro escolhera aquele local para se proteger da chuva. E o dono do açougue só olhava a multidão com os olhos compridos e tristes. Ah, se cada pessoa que estivesse ali levasse ao menos 1kg de carne, o dia dele estaria feito!  E aquele açougue trazia outras variedades: temperos prontos, carvão, sal grosso, cebola, farofa, óleo vegeta, batata, alho e tomate... cebola, batata, tomate... foram estes 3 itens de um diálogo longo e tortuoso entre o W e minha irmã.
- O que é isso, Tia Cheche?
- Batata.
- E isso?
- Tomate.
- E aquilo ali.
- Cebola.
A tempestade acalmava e a Y também, por incrível que pareça. E o W continuava:
- Isso daqui o que é, Tia Cheche?
- Cebola.
- E isso?
- Batata.
- Aquilo ali é o que?
- Tomate.
Silencio, mas de repente:
- O que é isso?
- Batata.
- E aquilo dali?
- Tomate.
- E isso?
- Cebola.
Não, ele não se contentava:
- Qual o nome disso, tia?
- Batata.
- E isso aqui é o que?
- Cebola.
- E aquele de lá?
- Tomate.
E mais uma vez:
- Isso aqui o que é que é, tia Cheche?
- Cebola.
- E isso?
- Tomate.
- Aquilo dali mesmo?
- Batata.
Quando olhei para minha irmã e vi a expressão de desespero, foi o único instante em que consegui sorrir um pouco. Mas o cansaço, a angústia e o soluçar da Y eram tão maiores, que rapidamente me impediam de sorrir.
E novamente:
- Tia Cheche, como isso chama?
- Ai, ai... é tomate.
- E isso mesmo?
- Senhor, é cebola.
- E aquele?
- Cristo, é batata.
Minha irmã pegou a Y no colo e adivinhem? Bingo: eu só respondia – cebola, batata e tomate. Não importasse a pergunta, sempre eram repetidas as 3 palavras: cebola, tomate e batata.
A chuva está parando? Cebola.
Será que podemos ir? Tomate.
Que tal esperar mais um pouco? Batata.
O W não cansava e eu fiquei em modo automático: cebola, tomate e batata.
Minha irmã, no auge do stress disse:
- Pelo amor de Deus, vamos ligar pra casa e pedir pra mãe trazer guarda-chuva! A gente põe crédito no celular pra gastar numa emergência, não é? E isso é muito mais que uma emergência!!!
Quem disse que eu estava lá pensando em economizar créditos? Nem lembrava que tinha celular!!!
Mas com a declaração da minha irmã  eu só conseguia pensar e rir: "Pobre é uma desgraça mesmo! Sem carro, uma puta tempestade, dentro de um açougue olhando para um monte de bois esquartejados e sentindo o cheirinho do churrasquinho com farinha que era vendido na porta, sem contar as batatas, os tomates e as cebolas e ainda evitando usar o celular para não gastar créditos. E para quê? Para pedir à Dona Flor que trouxesse os guarda chuvas."
E assim fizemos. Ligamos para Dona Flor e o pedido foi feito, porém não mencionamos que as crianças estavam conosco. Ela demorou tanto que a chuva cessou.
Saímos do bendito açougue (ou seria maldito?) e seguimos caminho para casa. Em poucos metros encontramos Dona Flor, que ao nos ver ficou chocada, imóvel e jogou os guarda chuvas num canto da calçada. Vi sua face corar e seus olhos se banharem em lágrimas.
- Suas cadelas! Por que não me contaram?
E o W gritou:
- Olha a vovó! - e sorriu, riu, gargalhou.
Dona Flor foi abraçando cada netinho e eu tinha a sensação que ela se derreteria em lágrimas. Inevitável não cairmos no pranto também. Bom, a Y já estava em prantos há tempos. Nos abraçamos e mais lágrimas!


Depois da sessão repetitiva de "batata, tomate e cebola", o W conseguiu outras perguntas para nos enlouquecer pouco a pouco.
- E a gente vai pra casa?
- Sim.
- E a vovó também?
- Claro.
- E a gente já chegou?
- Não. Ainda não!


Mais alguns passos, pouquíssimos metros e:

- E a gente tá indo pra casa?
- Sim.
- E a vovó também?
- Claro.
- E a gente já chegou?
- Não. Ainda não!


Haja paciência!
As batatas, os tomates e as cebolas? Ficaram lá no açougue... graças a Deus!!!

Continua...

domingo, 25 de setembro de 2011

ALGUMAS COISAS


Sei que já falei com muitas pessoas, por diversas vezes, o que me motivou a escrever este blog. Só não me recordo se já escrevi. Claro, em primeiro lugar, compartilhar as experiências que tive participando do processo de adoção porque, infelizmente, aqui no Brasil o assunto ainda é visto como um gigante TABU; praticamente não há livros ou sites que abordem o tema longe das questões processuais, judiciais, legais e estatísticos. Outro fato importante é que as pessoas que passam ou passaram por um processo de adoção, quase nunca estão dispostos a falar sobre e eu, como mãe adotiva, entendo todos e quaisquer motivos. Além do assunto ser um tabu, também carrega uma longa história de preconceitos e críticas.

Decidi então mostrar aqui todas as faces da moeda. De maneira simples, linguagem coloquial (até porque nunca tive nem tenho a pretensão de ganhar um Nobel de Literatura), descrevo, aos poucos, momentos que foram muito importantes para mim, principalmente por ter que vivê-los sozinha, sem um "alguém" para compartilhar ou simplesmente me dar auxílio de como agir diante de tantas situações pelas quais passei!

Na verdade este blog já existia num manuscrito, onde eu descrevia as situações diretamente e unicamente para meus filhos. Sempre achei muito importante deixar registrado tudo que eu sentia, passava e pensava. Decidi escrever uma espécie de "diário" para que meus filhos pudessem ler e tirassem suas próprias conclusões em relação a tudo que fiz e transformei na vida deles. Sei que um dia vamos sentar na sala, sobre um tapete bem colorido e falar da nossa história, enquanto tomamos muito sorvete para diminuir a ansiedade, porém ficava imaginando se cada um pudesse ler, em separado, um pouco de seu passado e poder imaginar, pensar, refletir, concluir, sem as minhas opiniões embutidas, por menos que eu tentasse ser imparcial. Também de suma importância que eles saibam o que é de fato a adoção. Não apenas o significado, mas o "viver" uma adoção... com a visão do adotante, claro. E num belo dia decidi colocar as histórias e causos em público, ou seja, num blog. Adaptei a linguagem e a maneira de me relacionar com o leitor, já que ele não é mais apenas meu filho ou minha filha.


E cada parágrafo que concluo, percebo que desmistifico a lenda de que a ADOÇÃO nada tem de conto de fadas; tão pouco um conto de horror. Sua vida muda de uma hora para outra; é o momento do tudo ou nada. Acredite: nada é perfeito, muito longe disso. Afirmo, com todos os caracteres que as complicações são imensas. Há a adaptação e a provação - sem sombra dúvidas a pior fase para se viver, porém necessária. Necessária  e extremamente importante para o vínculo pai x filho ser estabelecido. E afirmo também com todos os caracteres (agora em caixa alta também) que há recompensa por e quando menos se espera. E, assim como acontece com os filhos biológicos, é impossível prever e precaver. Lembre-se: você tem uma pessoa em sua vida com defeitos, qualidades, personalidade e vontades próprias... ou seja, assim como você também: uma caixa de surpresas, onde se pode sair de tudo... e um pouco mais!