O trecho abaixo é dedicado especialmente à minha
irmã Elizane Santos de Andrade Bichara. Tenho certeza que esse episódio que
passamos juntas jamais será esquecido por ela.
Se vocês que acompanharam os últimos posts pensaram
que o dia 17 de Dezembro foi longo (não me lembro em quantas partes o escrevi), garanto que vão achar o dia 23 de
Dezembro tão longo quanto. Acreditem (se quiser) que as descrições narradas não
foram propositais; os dias específicos foram longos em demasia para mim, como
se tivessem 72 horas.
Dezembro. Verão intenso. No ano de 2009 a
temperatura chegava a 35, 37 graus. No final da tarde, a costumeira tempestade
de verão.
O portão se fechou atrás de mim. Estávamos os 4 na
rua. Nuvens negras se formavam e cada trovoada trazia a sensação de insegurança.
Lembro-me da minha irmã, segurando o W no colo e
preparando-se para correr até o ponto de ônibus porque alguns pingos de chuva
começavam a cair... um aqui... outro acolá.
Eu estava com a Y. Mal dei o primeiro passo e os
berros começaram. Também tentei correr, mas não tinha hábito de correr com peso
nos braços, muito menos com uma criança, que se mexe, é flexível... e chora!
Minha irmã me impressionou. Como conseguia correr daquele jeito com uma
criança? Que inveja! Com a diferença de muitos minutos cheguei ao ponto de
ônibus, já molhada pela chuva que aumentara.
Tempestade. Ponto de ônibus. Duas crianças. Uma
sacola de plástico com documentos e algumas peças de roupa infantil. Uma irmã que se mostrava forte, decidida e desafiadora. Um eu ainda anestesiada e em
choque. Meu cérebro trabalhando tanto que chegava a latejar e eu sentia como se
levasse várias marteladas. Uma das crianças chorando no meu colo. Não, não
havia um guarda chuva se quer.
E nesta agonia já haviam se passado mais de 15
minutos. As pessoas que estavam no ponto demonstravam impaciência como o choro
da Y. A cada minuto que passava me sentia mais e mais angustiada. Quanta
pressão! Quanta novidade! Quanto tudo!!! Eu sentia desespero e uma vontade
enorme de chorar, até mais alto que a Y.
Finalmente avisto o ônibus com o letreiro 948A V.
Zatt. Ufa! Levantar a mão dando sinal para que ele parasse. Eu vivia assim: um
passo de cada vez porque era tenebroso pensar no depois.
Entramos no ônibus e o W também começa a chorar.
Meu Deus! Que vontade de virar fumaça, voltar às cinzas, sei lá. Minha irmã,
sempre mais esperta e pulso firme, controlou a situação com o W em poucos
minutos. A Y e eu? A coisa estava feia, horrorosa e só piorou. Tentei sentar-me
com ela; foi a pior coisa que fiz. Levantei e tive a certeza que ficar sentada
não havia sido a pior coisa, não. Coloquei-a sentada sozinha no assento e a
segurava. O escândalo só aumentou. Deixei-a de pé no banco para que a paisagem
a acalmasse. Nada! Preciso comentar que os passageiros me batiam com os olhos e
me encaravam como se fossem me linchar? E eu com a sensação que a qualquer
momento o motorista pararia o ônibus e me expulsaria dali, aos pontapés, como
um cão sarnento. Oh, Cristo Senhor, Maria Mãe de Jesus e José pai do mesmo... o
ponto para descida não chegava! Tive a impressão que o ônibus nem saíra do
lugar. Cheguei a um momento em que nada enxergava. Só tinha o sentido da
audição para perceber os berros da Y. Padim Ciço, Ave Maria, Nossa Senhora de
Fátima, São Judas Tadeu e todos os santos da igreja católica que eu nem
conhecia, me ajudem por tudo que há de mais sagrado na Terra !!!
Então descemos. Ainda chovia muito. Ponto sem
cobertura, lá vamos nós entrar no açougue para nos protegermos da chuva.
Açougue? Sim, você leu a-ç-o-u-g-u-e. Açougue que tem carne moída, costela,
miolo de acém, linguiça fresca e seca, coxão mole e duro, alcatra, músculo,
patinho, cupim, toucinho, ovos, salsicha, bisteca, bife, coxa, asa, frango
resfriado (ainda bem que não era gripado), joelho de porco, pescoço de frango,
fígado, moela... aaaaaaaaaah! Só tinha aquela bendita placa para ler e distrair
minha cabeça que doía. E o açougue só ia ficando lotado; parece que todo o
bairro escolhera aquele local para se proteger da chuva. E o dono do açougue só
olhava a multidão com os olhos compridos e tristes. Ah, se cada pessoa que
estivesse ali levasse ao menos 1kg de carne, o dia dele estaria feito! E aquele açougue trazia outras variedades:
temperos prontos, carvão, sal grosso, cebola, farofa, óleo vegeta, batata, alho
e tomate... cebola, batata, tomate... foram estes 3 itens de um diálogo longo e
tortuoso entre o W e minha irmã.
- O que é isso, Tia Cheche?
- Batata.
- E isso?
- Tomate.
- E aquilo ali.
- Cebola.
A tempestade acalmava e a Y também, por incrível
que pareça. E o W continuava:
- Isso daqui o que é, Tia Cheche?
- Cebola.
- E isso?
- Batata.
- Aquilo ali é o que?
- Tomate.
Silencio, mas de repente:
- O que é isso?
- Batata.
- E aquilo dali?
- Tomate.
- E isso?
- Cebola.
Não, ele não se contentava:
- Qual o nome disso, tia?
- Batata.
- E isso aqui é o que?
- Cebola.
- E aquele de lá?
- Tomate.
E mais uma vez:
- Isso aqui o que é que é, tia Cheche?
- Cebola.
- E isso?
- Tomate.
- Aquilo dali mesmo?
- Batata.
Quando olhei para minha irmã e vi a expressão de desespero,
foi o único instante em que consegui sorrir um pouco. Mas o cansaço, a angústia
e o soluçar da Y eram tão maiores, que rapidamente me impediam de sorrir.
E novamente:
- Tia Cheche, como isso chama?
- Ai, ai... é tomate.
- E isso mesmo?
- Senhor, é cebola.
- E aquele?
- Cristo, é batata.
Minha irmã pegou a Y no colo e adivinhem? Bingo: eu
só respondia – cebola, batata e tomate. Não importasse a pergunta, sempre eram
repetidas as 3 palavras: cebola, tomate e batata.
A chuva está parando? Cebola.
Será que podemos ir? Tomate.
Que tal esperar mais um pouco? Batata.
O W não cansava e eu fiquei em modo automático:
cebola, tomate e batata.
Minha irmã, no auge do stress disse:
- Pelo amor de Deus, vamos ligar pra casa e pedir
pra mãe trazer guarda-chuva! A gente põe crédito no celular pra
gastar numa emergência, não é? E isso é muito mais que uma emergência!!!
Quem disse que eu estava lá pensando em economizar créditos? Nem lembrava que tinha celular!!!
Mas com a declaração da minha irmã eu só conseguia pensar e rir: "Pobre é uma desgraça mesmo! Sem carro, uma puta tempestade, dentro de um açougue olhando para um monte de bois esquartejados e sentindo o cheirinho do churrasquinho com farinha que era vendido na porta, sem contar as batatas, os tomates e as cebolas e ainda evitando usar o celular para não gastar créditos. E para quê? Para pedir à Dona Flor que trouxesse os guarda chuvas."
E assim fizemos. Ligamos para Dona Flor e o pedido foi feito, porém não mencionamos que as crianças estavam conosco. Ela demorou tanto que a chuva cessou.
Saímos do bendito açougue (ou seria maldito?) e seguimos caminho para casa. Em poucos metros encontramos Dona Flor, que ao nos ver ficou chocada, imóvel e jogou os guarda chuvas num canto da calçada. Vi sua face corar e seus olhos se banharem em lágrimas.
- Suas cadelas! Por que não me contaram?
E o W gritou:
- Olha a vovó! - e sorriu, riu, gargalhou.
Dona Flor foi abraçando cada netinho e eu tinha a sensação que ela se derreteria em lágrimas. Inevitável não cairmos no pranto também. Bom, a Y já estava em prantos há tempos. Nos abraçamos e mais lágrimas!
Depois da sessão repetitiva de "batata, tomate e cebola", o W conseguiu outras perguntas para nos enlouquecer pouco a pouco.
- E a gente vai pra casa?
- Sim.
- E a vovó também?
- Claro.
- E a gente já chegou?
- Não. Ainda não!
Mais alguns passos, pouquíssimos metros e:
- E a gente tá indo pra casa?
- Sim.
- E a vovó também?
- Claro.
- E a gente já chegou?
- Não. Ainda não!
Haja paciência!
As batatas, os tomates e as cebolas? Ficaram lá no açougue... graças a Deus!!!
Continua...
Quem disse que eu estava lá pensando em economizar créditos? Nem lembrava que tinha celular!!!
Mas com a declaração da minha irmã eu só conseguia pensar e rir: "Pobre é uma desgraça mesmo! Sem carro, uma puta tempestade, dentro de um açougue olhando para um monte de bois esquartejados e sentindo o cheirinho do churrasquinho com farinha que era vendido na porta, sem contar as batatas, os tomates e as cebolas e ainda evitando usar o celular para não gastar créditos. E para quê? Para pedir à Dona Flor que trouxesse os guarda chuvas."
E assim fizemos. Ligamos para Dona Flor e o pedido foi feito, porém não mencionamos que as crianças estavam conosco. Ela demorou tanto que a chuva cessou.
Saímos do bendito açougue (ou seria maldito?) e seguimos caminho para casa. Em poucos metros encontramos Dona Flor, que ao nos ver ficou chocada, imóvel e jogou os guarda chuvas num canto da calçada. Vi sua face corar e seus olhos se banharem em lágrimas.
- Suas cadelas! Por que não me contaram?
E o W gritou:
- Olha a vovó! - e sorriu, riu, gargalhou.
Dona Flor foi abraçando cada netinho e eu tinha a sensação que ela se derreteria em lágrimas. Inevitável não cairmos no pranto também. Bom, a Y já estava em prantos há tempos. Nos abraçamos e mais lágrimas!
Depois da sessão repetitiva de "batata, tomate e cebola", o W conseguiu outras perguntas para nos enlouquecer pouco a pouco.
- E a gente vai pra casa?
- Sim.
- E a vovó também?
- Claro.
- E a gente já chegou?
- Não. Ainda não!
Mais alguns passos, pouquíssimos metros e:
- E a gente tá indo pra casa?
- Sim.
- E a vovó também?
- Claro.
- E a gente já chegou?
- Não. Ainda não!
Haja paciência!
As batatas, os tomates e as cebolas? Ficaram lá no açougue... graças a Deus!!!
Continua...