quinta-feira, 15 de setembro de 2011

INESPERADO


Vamos recapitular os últimos acontecimentos:

- Fui conhecer as crianças no abrigo no dia 17 de Dezembro de 2009.
- Tive os dias 18 e 19 de Dezembro para tomar a decisão mais importante da minha vida.


Então, no dia 20 de Dezembro de 2009 liguei para o Fórum e confirmei com a Sra. X que ficaria com o W e a Y.

Fui orientada a fazer a adaptação, que constava em visitar o abrigo durante um período e ficar com as crianças até que o responsável avaliasse o meu envolvimento com elas. Minha adaptação foi estabelecida:

Dias 21, 22 e 23 - Passaria a tarde com o W e a Y no próprio abrigo
Dia 24 - Os levaria para passar o Natal em casa
Dia 26 - Os levaria para o abrigo
Dias 27, 28 e 29 - Voltaria com a rotina de passar a tarde com eles
Dia 30 - Os levaria para passar o Réveillon em casa
Dia 02 - Levá-los novamente para o abrigo

Depois disso continuaria com a adaptação sempre no período da tarde até que eles fossem liberados (ou não) para ficarem definitivamente em casa e dar início ao processo de consultas e avaliações com assistentes sociais e psicólogas, ficando com guarda provisória até que ambas aprovassem o pedido de adoção para, futuramente, ser encaminhado ao Juiz para assinatura e liberação para novo registro em cartório, com meus dados.

Mas... não foi bem assim que as coisas funcionaram na prática...

Nos dias 21 e 22 segui o ordenado. Fui sozinha porque Dona Flor dizia que não aguentaria ficar apenas uma tarde com eles e ter que deixá-los lá.

No dia 21 quando cheguei ao abrigo tive contato com outras crianças. Minha "integração"  com o W e a Y seria como no dia a dia deles. E foi aí que eu passei por emoções também marcantes. Em menos de um minuto, fui rodeada por muitas crianças, com olhos perdidos, brilhantes e desesperados. Abraçavam minha perna e as mesmas pareciam gritar em coro:

"Você veio escolher alguém? Você vai ser mesmo a mamãe do W? Por que você escolheu o W e não a mim? Tia, escolhe eu... Tia, leva eu..."

Eu ficava numa situação horrível, dolorida. Mesmo que eu soubesse que daria a oportunidade de dar um lar para duas crianças, continuava magoada ao saber que tantas continuariam ali, na expectativa de um dia sair dali, ter um lar, uma família, um pai ou uma mãe. Não estou aqui falando que o abrigo fosse um lugar sinistro, muito pelo contrário, ele tinha vida, os funcionários eram alegres e dedicados a cada criança. Era notável, em cada criança, o cuidado com os cabelos penteados, unhas cortadas, roupas limpas e rostinhos corados. Participei do almoço e vi que eram bem alimentadas, com legumes, frutas, sucos. Mas, evidentemente, nada se compara a um lar, uma família, o aconchego de braços maternos e paternos para abraçar e sentir carinho. Ah, que vontade de levar todas para casa!

Era hora do almoço e todos foram encaminhados ao refeitório. Cada criança foi se acomodando nas cadeiras e eu avistei uma ala onde só haviam cadeirões e bebês. As funcionárias alimentavam os bebês com papinha e logo fui chamada para fazer o mesmo com a Y. Oh, meu Deus, que medo senti! Era uma situação nova; eu nunca dera comida para nenhuma criança, independente do tamanho. Mesmo munida com muita inexperiência me aproximei e a primeira coisa que ouvi foram os berros da Y. Eu, desesperadamente já fui colocando uma colher cheia de papinha na pequena boca da Y, imaginando que ela berrava por fome. Oh, engano! Além do berro continuar, ela cuspiu toda papinha no meu rosto, cabelo, pescoço e colo. E a minha cara de tacho apareceu...  eu tentei cantar para ela, bati palmas, fiz aviãozinho... mas nada! Aquele chororô começava a me deixar em pânico. Sem contar a sensação de estar sendo observada por todos os adultos presentes. Era uma prova, um teste e eu sentia que poderia reprovar. Aqueles 20 minutos foram, na verdade, 2 horas pra mim. Com muita dificuldade consegui que a Y comesse tudo e tomasse o suco. Fui ao encontro do W, que já terminava a refeição praticamente. Ao menos, pude auxiliá-lo para limpar as mãos e a boca. 

Depois disso, a Y foi dormir e eu fiquei com o W. Um momento muito gostoso onde brincamos muito, montamos quebra-cabeças, o empurrei nos balanços e gira-gira e observei enquanto ele "pilotava" a motoca. Então, a Y acordou e fui pegá-la. Um momento não tão prazeroso quanto com o W, mas eu sabia que era muito importante. Eu precisava fazer com que ela confiasse em mim para que eu pudesse me aproximar. A maior parte do tempo ela chorava e babava. Eu só conseguia distraí-la por alguns momentos nos brinquedos do mini parque, mas ela enjoava rápido da brincadeira e as lágrimas começavam. Então era obrigada a inventar nova distração. Aproveitava também para aproximá-la do W, para criarem laços afetivos, mas era difícil... ela mordia, batia no rosto dele, jogava os brinquedos pro ar. Ai, ai... e eu ali, sozinha, sem ninguém para me orientar, conversar e me descontrair. Pelo contrário, os olhos que me perseguiam só me avaliavam. Juro que por diversas vezes precisei segurar as lágrimas porque eu estava me sentindo incapaz de cumprir a difícil missão de conquistar a Y. E enquanto tudo isso acontecia, eu também precisa conversar, interagir com o W, porque ele insistia em fazer as mesmas perguntas, como se me pressionasse a tomar uma atitude o quanto antes:

"É hoje que eu vou pra sua casa? E cadê a vovó? Você demorou muito pra voltar, mamãe. Eu pensei que você não me queria. Eu já fiquei bastantão aqui agora eu tenho que ir pra sua casa ver minha vovó. É hoje que você me leva? Quando é que eu vou conhecer a sua casa? Quando é que eu vou pra lá, hein?"

Como meu coração ficava apertado. Que vontade louca de pegá-los no colo e sair correndo dali. Mas, eu nada poderia fazer.

E assim, concluí a adaptação do dia 21. A visita do dia 22 não foi muito diferente. Só o desespero do W crescia; havia tanta ansiedade dentro dele que às vezes eu sentia que ele me pegaria pela mão e sairia correndo dali. Nesses momentos eu respirava profundamente e procurava manter a calma e a paciência. Puxa, era tão difícil! Agora faltava a adaptação do dia 23...

Olha que incrível... dia 23 de Dezembro era aniversário do W. Ele faria 3 aninhos. Logo, eu participaria da festinha que voluntários ofereciam às crianças do abrigo todo final de mês para os aniversariantes.

Então, dia 23 de Dezembro fui ao abrigo, livre, leve e solta, já que apenas participaria da festinha de aniversário. Minha irmã me acompanhou porque ainda não tivera a oportunidade de conhecê-los. Toquei a campainha. Houve uma pequena demora, como de costume. Então a Sra. F abriu o portão e me deu uma inesperada notícia.

Continua...

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

ABRINDO PARÊNTESES



Devido a alguns comentários e, principalmente pelos e-mails que recebi, devo abrir um parênteses no que tenho escrito para poder esclarecer alguns pontos, que ao que notei, ficaram obscuros e acabaram sendo mal entendidos/interpretados.

Primeiramente gostaria de escrever com todas as letras, em negrito e caixa alta que a entrada das duas crianças na minha vida foi o acontecimento mais marcante, completo e importante de minha vida. E tenho certeza que não haverá até o resto de meus dias um único momento que poderá ser equivalente ou que chegará próximo dele. Deixo aqui também o registro de que minha vida "começou" quando eu os conheci; o que tinha antes não era vida, eram apenas dias após dias. Nunca tive dúvidas se eu estava disposta ou pronta para assumí-los. Jamais me encontrei confusa sem saber se eram realmente as crianças "certas" - os amei desde o primeiro olhar e eu sei que há e que sempre haverá infinitas pessoas que jamais acreditarão que eu já os amava sem nem ao menos conhecê-los.

Foi naquela tarde de sexta-feira que enxerguei cores pela primeira vez. De repente meu mundo deixou de ser monocromático e cada minúsculo pedaço de cada coisa que me rodeava recebeu uma pincelada com cores diferentes. Ali, conheci verdadeiramente o arco-íris porque as nuvens cinzas e carregadas se dispersavam e deixavam um céu azul ao alcance dos meus olhos tristes. Não quero nem pensar em como seria minha vida hoje sem eles. Afasto todo e qualquer pensamento que me faça imaginar se, por algum motivo, tenhamos que nos separar porque eu vegetaria e morreria à míngua.

Não, não e não! Nunca me arrependi por ter decidido trazê-los para o meu convívio.

Talvez, você que não é pai ou mãe não conseguirá responder as perguntas que colocarei a seguir, mas tenho certeza que qualquer pai ou mãe, que tente se colocar no meu momento atual, sentirá as mesmas incertezas que descreverei.

Pronto? Preparado?

Não houve vez em que você se sentiu impotente diante de seu filho por não poder assistí-lo da maneira que achava plenamente satisfatória?

Não existiu, ao menos uma vez, uma ponta de dúvida se você estava defendendo seu filho exatamente da maneira como você julgava que ele merecia?

Você nunca se sentiu inseguro por não saber se conseguiria exercer sua função de maneira perfeita? Nunca sentiu medo por saber que não é perfeito?

Pense, ao menos por um segundo, se nunca sentiu seu coração esmigalhado por compreender os motivos pelos quais seu filho deseja o brinquedo amarelo, mas você só pode oferecer o verde.

Seu coração e mente jamais foram invadidos por pânico quando você pensou que talvez não conseguiria fazer seu filho completamente feliz?

Nunca entrou em desespero por saber que o conforto dele não era garantido? Que talvez no próximo aniversário ele não teria um presente ou o bolo de tradição? Ou que no próximo inverno ele usaria as mesmas roupas surradas e, provavelmente, pequenas? 

O futuro nunca o colocou em situação de desespero? Será que seu filho cursaria a melhor escola? Chegaria à faculdade?

Você conseguiria cumprir todas as suas funções de pai/mãe? Claro, afinal de contas você decidiu por trazer aquela vida ao mundo e simplesmente cruzaria os braços e ficaria tranquilo sabendo que o futuro dele não estava garantido enquanto você tenta se equilibrar numa corda bamba?

Francamente, você nunca se sentiu culpado por saber que as privações de seu filho eram única e exclusivamente por falha sua?

Nunca andou pela rua e deparou-se com uma roupa, brinquedo ou chocolate mais caro que faria a felicidade do seu filho e sentiu-se envergonhado por não ter uma moeda no bolso? Jamais saiu de uma loja ou supermercado triste sabendo que deixara para trás uma surpresa para ele?

...

Tenho um milhão de perguntas para fazer, mas creio que você já conseguiu entender a essência do que tentei explicar.

Consegue agora pensar como eu por mais que não concorde?

A dor que venho carregando é a de saber que o destino de duas vidas está nas minhas mãos e, não consigo entender o motivo, tenho a sensação que na verdade nenhuma diferença faço no destino delas? É a angústia de uma mulher que planejou a vida de cada um deles, que foi atrás sem medos, que dedicou cada dia seu para garantir o mínimo de sucesso e agora está mergulhada em fracasso. Não são lamentações ao acaso ou uma maneira repentina de querer ser "vítima".

Tenho certeza que fiz tudo certo. Tenho a certeza porque tenho um passado que prova. E quando falo que estou sendo egoísta é exatamente porque não tenho direito de privar meus filhos do que eles possam ter de melhor. Minha preocupação é demasiada porque não consigo cumprir neste momento aquilo que propus a mim mesma, em primeiro lugar. Não quero que meu fracasso faça deles pessoas incompletas.
Por que penso assim?
Bem, você não sabe o que é ser mãe adotiva. Tudo e todos cobram em dobro cada atitude sua.

"Tá vendo? Por que foi inventar? Não adianta querer ser a boa samaritana! Bobagem! Tá vendo, você não garantiu o Reino dos Céus. A culpa é sua. Não consegue lidar com responsabilidades, não fosse atrás, se meter onde nunca foi chamada. Nenhuma das crianças veio pedir nada a você. Muito pelo contrário: você prometeu um monte de coisa e agora não pode cumprir. Se não tem capacidade, que as deixasse lá. Se não pode, não adote!"

Isso só me faz acreditar que errei.
Por que me sinto tão culpada?
Estou no débito com eles. 

Eu achava que mudaria a história de duas pessoas. Não, em nada estou mudando. Mero engano meu. São eles que já mudaram a minha vida... para muito, muito melhor!

(Fechando parênteses)