quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

BATALHA INTERROMPIDA - PARTE II

Já eram 18:20 quando fui informada do término da cirurgia.

Não entendia porque demorara tanto e meu coração estava tão acelerado que meu peito doía, como se a cada palpitar, tentasse abrir meu diafragma.

Saí da sala de espera e entrei no centro cirúrgico no exato instante em que retiravam minha pequena de uma das salas para encaminhá-la à observação. Ainda estava anestesiada e entubada, dando a impressão que estava sem vida. Fui ao encontro da maca, os olhos cheios de água, o peito doendo e a mente confusa. Antes de me aproximar, vi a Doutora Giovana sair da sala e foi impossível não abordá-la. Perguntei o que havia acontecido e ouvi as palavras que eu mais temia desde que iniciou-se todo o processo de reconstrução capilar.

"Mãe, não podemos fazer mais nada. Todo o tecido está comprometido. Tivemos que retirar boa parte porque o tecido estava muito fino. Quanto mais mexermos, é perigoso perder o que tem. Infelizmente, mãe, não há qualquer possibilidade de reconstruir o couro cabeludo cirurgicamente."

Minhas pernas amoleceram e senti um calafrio correr pelo meu corpo exausto. Meu coração acelerou ainda mais aumentando a pressão em meu peito. E o inevitável aconteceu: lágrimas espessas correram por todo meu rosto fazendo com que minhas pálpebras e a pele queimassem. Senti os olhos arderem como se eu chorasse ácido.

Tentei classificar a dor, mas não havia como! Repassei uma longa retrospectiva da minha vida em segundos procurando lembrar de alguma dor que pudesse ser comparada a que eu sentia no momento. Tentativa inútil! Jamais sentira algo parecido.

Chorei até soluçar, chamando a atenção dos anestesistas, cirurgiões e enfermeiros. Lembro-me das mãos quentes da doutora Giovana nos meus ombros procurando me consolar e me dar forças.

Foi então que senti a sala ficar enorme e o vazio ficar cada vez maior. O pânico entrava por cada poro do meu corpo e não havia nada que eu pudesse fazer para aliviar a sensação de desespero.

Naquela hora quis sentir um abraço, mas não havia ninguém para abraçar. Quis gritar um monte de palavrões, mas não havia ninguém para me ouvir. Quis que alguém me dissesse qualquer coisa, não importava o quê, até porque eu nem ouviria. Eu levara um golpe da vida e, só para variar, estava sozinha. Talvez estivéssemos apenas Deus e eu, porém eu evitei pensar em Deus. Ao lembrar Dele, senti angústia misturada à raiva e revolta.

" Então foi pra isso, Deus, que você colocou a Becca na minha vida? Pra eu fracassar quando minha maior missão era garantir, ao menos, a qualidade de vida dela? Foi pra isso? Pra eu autorizar 12 procedimentos cirúrgicos e ser a responsável por fazê-la sofrer? Pra eu me sentir impotente e, sobretudo, ser a pessoa que terá que confessar o fracasso da batalha mais importante da vida dela? Você me escolheu para olhar nos olhos dela e anunciar que ela será uma criança, uma garota, uma adolescente, uma mulher sem cabelo? Sou eu quem terá que olhar para ela todos os dias e ouvir seus desejos de ter cabelos, sejam eles lisos, encaracolados, crespos? Fui escolhida para todos os dias colocar o chapéu, boina ou lenço em sua cabeça para esconder as marcas de algo que não pude dar a ela? Foi pra retirar meu ar que Você me encheu de esperança? Por que me encheu de esperança, me deu força e coragem para correr atrás de cirurgias, expansores, noites sem dormir? Esse era o objetivo? Me fazer passar por ansiedade, tristeza e agora essa dor indescritível?"

Não era o melhor momento para pensar em Deus. Estava brava, nervosa, revoltada, triste e havia perdido a razão.

Hoje, após um mês, fico imaginando: se tivesse alguém comigo naquele momento talvez eu não tivesse ficado tão brava com Deus, talvez minha dor não fosse tão perturbadora. A única coisa que posso dizer agora é: se você conhece alguém que vai ficar na sala de espera enquanto um ente querido passa por procedimento cirúrgico, não meça esforços para fazer companhia. Tenha certeza: fará toda diferença. Passar por instantes agonizantes como o que narrei 
e ter somente as paredes brancas e frias ao seu redor só fazem aumentar o desespero. E também torça para que você nunca seja o responsável por ter assinado o formulário de autorização para a cirurgia...

(continua)

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

PERCEPÇÃO

Como todo domingo de preguiça, as crianças e eu decidimos assistir um filme.

Claro, a escolha é sempre deles; sou mera expectadora. E a animação da vez foi Rango, um camaleão de estimação que entra em crise de identidade ao se ver perdido numa cidade do velho oeste precisando mudar radicalmente seu estilo de vida para viver um mundo real.

Confesso que estava no sofá apenas para fazer companhia aos meus pequenos. Como já havíamos assistido aquela animação pelo menos umas 15 vezes, não conseguia me concentrar e meus pensamentos voavam perdidos. Foi então que ouvi a conversa das crianças:

“Você viu, Becca? Eles estão brigando por causa de água!” – comentou  o Gabriel com ar de preocupação.

“Xiiiiii, tá igualzinho nossa cidade!” - a expressão na voz da Rebecca era de aflição.

“A diferença é que aqui não é deserto. Lá a gente até entende não ter água, mas aqui não dá, né?” completou ele.

“Acho melhor todo mundo começar a orar pra Deusu pedindo pra chover senão a gente vai morrer de sede. A gente tá sem água desde ontem. A gente tá é lascado!”

“Eu vou começar a pedir chuva na oração de hoje, sem falta. Não adianta só ficar falando: Olha o planeta, olha o planeta! Tem que orar. E muito!”

Nunca imaginei que a crise hídrica de São Paulo fosse preocupar meus filhos. Estávamos sem água desde a madrugada de sábado e só retornou na noite de segunda feira.

A que ponto chegamos, não? O que era assunto de adulto já está se transformando em preocupação de criança.


E nós, adultos, pensamos que os pequenos não estão prestando atenção. Pelo contrário, estão alertas, atentos e, sobretudo, muito mais conscientes.